04 dezembro 2011

O espelho não mente

O escravo acordou e olhou-se ao espelho.
Parecia tudo normal, excepto aquele estranho alto na garganta. Era um monte roxo, pútrido e com um cheiro asqueroso que, se pudesse falar, repetiria certamente a palavra morte até à exaustão.

Deu dois passos atrás, bêbado por um sentimento de inexplicável terror.
Levou as mãos à garganta mas nada. Nem uma pequena borbulha.
Espremeu o pescoço, apertou-o e roçou-lhe os dedos de alto a baixo, mas simplesmente não havia o que quer que fosse para sentir.

Respirando fundo, finalmente com calma olhou de novo na superfície espelhada que estava à sua frente e, assombrosamente lá estava aquele frúnculo fantasma que só naquela reflexão tinha existência real.
Examinou o móvel, tentando encontrar algum problema no espelho, mas a verdade era o que era: apesar de, na realidade, ter o pescoço normal, ali, naquele reflexo, algo doentio crescia-lhe e minava-lhe a existência.

Desceu para a rua, assustado.
Não respondeu quando o Rui lhe disse que o jantar afinal era para a semana, ou sequer contemporizou quando a Inês lhe contou que o negócio do qual fazia parte se ia de facto realizar.
Soturno, limitava-se a ver aquele monstro que lhe crescia como uma segunda cabeça em formato de pústula em cada vidro, montra ou espelho de carro.

Já no jardim sentou-se, tentando respirar fundo, tentando perceber onde estava e o que fazia.
O ar puro batia-lhe nos pulmões com uma força à qual não estava acostumado.
Subitamente entrou em desassossego quando o telemóvel tocou.
Atendeu-o a medo, tentando parecer normal. Do outro lado falou-lhe a dona, a mulher que lhe detinha a alma e corpo, dizendo-lhe que o detestava, que sem ela ele nunca seria nada, que exigia que a acompanhasse imediatamente aos seus afazeres.

Atordoado concordou e correu imediatamente para o escritório dela.
Lá, a mulher colocou-lhe a habitual coleira com a qual o passeava para seu gáudio e vaidade.
Reprimido, ele olhou-se uma última vez ao espelho.
Lá, o seu reflexo sorriu-lhe de maneira doentia. A pústula continuava lá, só que a coleira, essa, não existia naquele mundo paralelo.

Gozado, o homem fechou os olhos e nunca mais ousou olhar-se a qualquer espelho, não por medo mas por vergonha. 

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